segunda-feira, 31 de maio de 2010

Quando Don McLean foi pra cozinha

Depois de uma semana com jornada diária de 14 horas de trabalho, consegui, tarde da noite, chegar em casa na última sexta.
Itu me parecia uma cidade vizinha. Daquelas que não se lembra bem o nome, mas se recorda das fachadas das casas, das lojas e das igrejas.
Estava podre de cansado. Meus pés haviam se tornado cascos. Doíam como dentes podres. Minha coluna cervical ardia e repetia: "Otário...otário...otário...". Não tive forças para tirar as malas do carro.
Ficou tudo para o dia seguinte.
Meu filho dormia o sono dos justos. Minha mulher, sensualmente pousava suas pernas desnudas sobre a lateral do sofá.
Com o controle remoto da TV nas mãos, me olhou com o canto da boca e sorriu-me com o canto dos olhos: "Boa noite...amor!"
Promessas.
Ainda bêbado de exaustão, larguei tudo e fui direto pro banho. Vinte e cinco minutos de água quente. A terapia mais barata que se pode pagar.
Montado de minha camiseta de malha preferida e minha bermuda mais relax, desci para atualizar a conversa com uma esposa saudosa de uma semana.
Foi muito bom.
Achando que Morpheus finalmente me libertaria de tudo, deitei de lado na cama. Minha posição preferida para o sono. Minha roupa de cama preferida. Meu travesseiro mais suave. Fui fechando devagarinho os olhos.
Quase entorpecido pelo manto negro de Hera, quase sonhando com Bardot e Cardinale na minha cama, comecei a ouvir lá longe uma coisa estranha: "Em festa de rodeio...ninguém fica parado...".
Era uma mantra dos infernos, que ia invadindo meus ouvidos. Eu ia negando tudo: "Não...não...não...".
Mas o já nem-um-pouco-querido vizinho ia repetindo sempre o refrão vilânico. Era uma festa de babete na casa da esquerda. Era uma ode a música sertaneja num volume pra lá de irresponsável. Era muita sacanagem !
Minha cabeça, olhos, pés e base da coluna...tudo doía...e a safra de vinho ruim repetia: "É um mexe-mexe, é um rola-rola...".
Como um desgraçado qualquer foi capaz de compor isso ? E como um sem-mãe qualquer está sendo capaz de tocar isso...as 24h45m da noite de uma sexta-feira dolorida ?
Pensei em ligar na administração do condomínio e reclamar, mas minha esposa, guardiã fiel da política da boa vizinhança, bradou docemente: "Amor, pense em outra coisa...".
Pensei.
Acordei na manhã seguinte as 6h30, mais ou menos, como de costume. Olhei pela janela. Um dia lindíssimo, céu azul numa moldura verde-itu, anunciava minha vingança...
Fui pra cozinha preparar o café de todos. Menos o meu, que pertence lealmente a padaria Rebeca.
Peguei meu som portátil e conectei na caixa de som maior, comprada por indicação de Marcelo Caiano. Calma e friamente escolhi o repertório. Confesso que pensei em enfurecer tudo com Guns, num solo intenso de Slash em Welcome to the Jungle.
Lembrei da vingança de Macaulin Calkin no clip Black or White, de MJJ.
Tudo bem, não precisaria tanto.
Fui de Don Mclean, mesmo. Acabara de comprar o raro American Pie e ainda não tivera chance de ouvir.
Liguei o som, conectei a caixa, pus o CD, escolhi a faixa certa, aumentei o volume e virei tudo isso na direção da casa, lindamente silenciosa, de meu vizinho. Um silêncio pós festa tão bonito, que quase dava para ser ouvido.
Um silêncio que em nada se parecia com a farra sertaneja diabólica da noite anterior.
Sim. De minha cozinha produzi o último show em play back de Don Mclean.
O volume estava no máximo. E o herdeiro folk cantava alto: "Bye, Bye, Mr. American Pie...".
Ato contínuo meu telefone começou a tocar. Intensa e repetidamente. Desliguei da tomada.
Permaneci na cozinha terminando o café de todos. Menos o meu, pois a Rebeca me esperava com seu expresso espumante.
Meu vizinho espumava de raiva.
Às vezes, a vingança é doce como uma melodia. Literalmente.

GM

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Convocação

Para o gol eu chamaria Tom Jobim e João Gilberto, os verdadeiros guardiões da harmonia.
Nas laterais iriam ser confiscados Jorge Benjor e Tim Maia na esquerda (óbviamente !) e na direita Wilson Simonal e Juca Chaves (sem sacanagem !).
Os volantes seriam feras na contenção e no minimalismo: Jards Macalé e Toquinho. Os meia-armadores, com a clássica missão de desarmar nossas retrancas, Chico e Caetano, além de Gil e Lenine.
Para o ataque, não tenham dúvidas, o puro ácido de Raul Seixas, a presença de Milton Nascimento, a agilidade de Borges e o atrevimento de Arnaldo Antunes.
Sim senhores, o técnico seria mesmo Pixinguinha !
Esse time é titular lá em casa e não depende de patrocínio !

GM

sexta-feira, 7 de maio de 2010

461 Ocean Boulevard

Passei a última fase de minha infância e toda a adolescência semeando minha vocação pela boa música.
Ouvia de tudo. Num experimentalismo consumal, ouvia de tudo.
Algumas obras e obreiros de bom quilate logo me fisgaram: conheci Chico bem cedo; flertei com a Bossa e dei uns tapas no pop.
Acreditava mesmo que as FM´s eram a fonte das boas harmonias, que a rádio Jornal do Brasil era o refúgio mais cool do mundo e que Robertinho de Recife, Pepeu Gomes e Peter Frampton eram os deuses vivos da guitarra.
Perdoem-me aqui, pois, eu ainda não tinha bebido das fontes, nada profanas de Eric Clapton, Greg Allman e Derek Trucks.
Muitos já tinham me alertado que não se conhece Clapton até que se ouça 461 Ocean Boulevard. Sobretudo as míticas Give Me Strength e I Can´t Hold Out.
Recebi inúmeros avisos amigos de que Gov't Mule (na dúvida ouça Gordon James ou Forevermore), Derek Trucks Band, Widespread Panic e Little Feat eram os verdadeiros herdeiros de Clapton, Duane Allman, Knopfler e Buddy Guy.
Recebi endossos para deixar de ser besta e ouvir um pouco daquilo que os novos tocavam dos velhos. Esses mesmos novos acima listados.
Aceitei e esqueci um pouco a herança dos 70´s e 80´s.
Tudo bem que naquela época de chumbo quente e bocas fechadas, discos importados eram contrabando alienado, mas daí, a se encantar com as escalas altas de Robertinho e Pepeu...ninguém merece !

GM

quinta-feira, 6 de maio de 2010

São Paulo Invisível

Com um senso de urgência muito meu, saí do prédio administrativo da fábrica II e desci rumo ao estacionamento.
Acionei o controle remoto e o alarme, fiel amigo, disparou destravando a porta. Quem liga ?
Olhei em volta e pensei ter me tornado invisível. É incrível, mas o bom paulistano realmente ignora tudo a sua volta. Olha focado e vê apenas o que quer ver. Ninguém ouviu o alarme disparar. Amiúde, era alto e claro.
Neste momento entendi melhor a letra de Zeca Baleiro, quando diz que as vezes se sente "...mais solitário que um paulistano...".
O paulistano é só por opção.

Andei exatos 22 minutos de carro, pela marginal sentido Cidade Jardim, e parei exatas 9 vezes, pela força e imposição do tráfico insano. Em todas as paradas olhei à direita e à esquerda. As vezes de relance meus olhos cruzavam com outros, que ato contínuo, desviavam-se tediosos ou baixavam-se temerosos. A cidade parecia respirar medo.
O paulistano teme por opção.
Cheguei ao hotel e consegui pegar ainda entreaberto o elevador. Quatro pessoas dentro dele pareciam viver uma crise de invisibilidade. Sequer os olhares estavam nas mesmas direções.
Celulares nas mãos. Nada mais.
Incrível como fui me apaixonar por esta cidade.
Me sinto um pouco invisível também.

GM