quinta-feira, 22 de julho de 2010

No dia em que Steve Jobs salvou minha vida

Eu estava em viagem de férias. A data mais acomodada para isso sempre é o mês de julho. Quando pego meu filho no exercício do direito ao gozo de férias escolares. E minha mulher no exercício do direito de me aporrinhar.

Direito legítimo a qualquer prenda que te prenda.

No hotel, findo o primeiro dia, meus ouvidos estavam virgens ainda. Como donzela de 14 anos que sonha com o dragão e seu travesseiro entre as pernas.

No segundo dia, já no segundo dia, após um café da manhã nada frugal, meus ouvidos treinados de longe deram o alarme na figura ácida de uma fisgadinha bem embaixo da costela. Ouvidos atentos, sempre prontos a me lembrar da opção purista que fiz para música.

Ouvidos sacanas.

Foi logo na saída do restaurante reservado ao café. Lá estava uma caixinha de som lazarenta que vomitava um axé virulento: "Oiêê...foi Luanda que permeou...Oi iêiê no pelourinho o samba ficou...!" E essa estrofe digna de qualquer tese de doutorado em história ficava se repetindo e repetindo, entremeada por uns "ôba..ôba... e remelexe sim...Ôba...Ôba e remelexe não !"

Era insuportável !

Corri escada abaixo com um princípio de taquicardia. Minha boca secara e meus ouvidos estalaram naquele zumbido típico que prenuncia o desmaio.

Resolvi me refugiar no banheiro. Água fria no rosto e solidão. Tudo o que eu precisava, afinal, acho que quase ninguém reparara no meu estado.

Ledo engano ! No banheiro, bem no canto superior direito da parede, outra caixinha de som assassina bravateava solene e desafiadora: era Luiz Caldas, na voz de Luiz Caldas e arrebentando meu aparelho sensitivo com: "Pega ela aí...pega ela aí...pra quê...pra passar batom...!"

Pega quem ? Pra passar o que ? Quem disse que uma menina que quer batom precisa ser pega, à força, e além do mais...Luiz Caldas ????

Ato contínuo a ponta dos meus dedos começaram a suar. Uma forte tontura tomou conta de mim. Desesperado tentei mirar o caminho de saída do WC. Pisando duro e fingindo equilíbrio fui na direção da luz, tentando respirar sufocadamente.

Era pânico. O mais presente e real ataque de pânico dos últimos 02 anos ! Ah que vontade de descobrir o local secreto da cabine do DJ !

Minha mulher e filho me encontraram escorado numa palmeira. Pálido e frio. Insensivelmente meu filho me puxou forte na direção da praia.

Enfim bonança ! Na praia estaria livre do sistema de som do hotel. Livre para ouvir o ir-e-vir da maré e olhar com o canto dos óculos escuros algumas bundinhas mais empinadas e atrevidas.

Escolhemos um quiosque não muito afastado e organizei tudo: espriguiçadeiras, toalhas e bebidas. Tranquilidade zen.

Acabara de me espreguiçar lentamente na poltrona, quando resolvi olhar para cima, bem para o teto do guarda-sol. Surpresa fúnebre. Alojada, escondida, malocada no interior do guarda-sol, lá estava a nefasta caixinha de som. Certamente rindo de mim, zombeteira e vomitando longa e azedamente: "Segura o Tchan...amarra o Tchan...segura o Tchan...Tchan..."... Tchun e vai pro raio que o parta !
Uma fortíssima dor de cabeça me acotovelou o cérebro. Lá longe, como uma dor de dente distante, os acordes malditos continuam a invadir minha privacidade.
Segura o raio que o parta ! Pensei.

O coração palpitava. A boca estava seca. O ouvido zumbia. Os dedos da mão suavam. Senti um frio repentino. Sim era a morte que chegava. Morte encomendada por horas e mais horas de axé safra fraca. Axé ausente de Caetano e Gil. Axé que desconhecia Dorival e Mãe Menininha.
Pensei em fazer uma macumba. Mas estava fraco demais. Em posição fetal, na poltrona, apenas aguardava o fim. O inevitável fim.
Senti dedos macios tocando suavemente meu ombro esquerdo. Me virei e vi o rosto de anjo de meu filho que carinhosamente avisava: "Pai, achei seu Ipod..."
Salvação inocente !
Imediatamente pus os fones nos ouvidos e escolhi a primeira seleção que estava na lista de seleções.
Quase moribundo, esperei sofregamente pelo antídoto...e veio !

Primeiro foram os Stones, que com Honky Tonky Woman invadiram meus neurônios e acalmaram minha taquicardia terminal.
Na sequência bebi A Cor do Som, com uma versão psicodélica de Abri a Porta, de Dominguinhos.
A saliva voltava a minha boca e meus ouvidos iam abandonando o zumbido característico do pânico.
Para me recompor mais rápido vieram em sequência Help, dos Beatles e Tears in Heaven do Clapton. Uma ode ao paraíso.

Meus dedos estavam secos e firmes. Consegui sair da posição fetal e de medo absoluto. Sentei ereto e olhei ao redor. Olhei para cima e vi a caixinha de som ordinária e morfética. Com o volume do Ipod no máximo não ouvia mais nada.
Sorri vingativo.
Minha mulher comentou qualquer coisa ao meu lado. Não ouvi. Concordei. Ela sorriu feliz e matreira.
Totalmente relaxado dei as boas vindas a Mother, do Pink Floyd e arrematei a questão com Construção, do Chico e Trem das Cores, do Caetano.
E foi essa experiência de quase morte que hoje relato e que, se transformou na minha pior memória dessas férias. Férias em que conheci de perto o poder imbecilizante das letras vazias e dos ritmos de 02 acordes.
E se vivo estou, é por que Steve Jobs, e seu Ipod benevolente, me salvaram. E por via das dúvidas, tenho 04 aparelhinhos destes reservas, um em cada canto do meu mundo.
E o meu mundo tem canto sim, só que dos bons !

GM

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradeço seu comentário, crítica e sugestões!