sexta-feira, 17 de junho de 2011

Marisa Monte e a lenda do Profeta Gentileza


Saí de casa cedinho, como de costume. O galo ainda afinava seu canto e meu carro já estava na estrada Itu-Jundiaí.

No digital do relógio do carro, 6h21m. O termômetro marcava 11 graus. Seria certamente mais um dia frio neste quase inverno paulista.

Segui em frente.

Quando liguei o rádio do carro, a voz de Marisa Monte me surpreendeu.

Linda. Uma voz extremamente afinada, num timbre muito suave. Cantava como uma musa, uma princesa, uma gueixa.

O recado era simples: ouvir, relaxar e seguir em frente.

Era o disco “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”, lançado em 2000 e que estava num cantinho do carro, esperando ser tocado.

Comicamente, este disco foi surrupiado de minha cunhada Isa, que se estiver me lendo agora, vai dar por falta deste CD em sua coleção.

Acho que o delito foi cometido quando morávamos ainda em Ribeirão Preto e, numa visita distraída, Isabella deixou o CD em nossa casa e se foi.

Hoje é peça integrante de minha coleção, com direito a plaquinha de patrimônio, e não farei devolução.

De jeito nenhum.

Ocorre que estava então dirigindo o carro e ouvindo o CD, já nos arredores de Jundiaí, quando percebi uma faixa num tom diferente das demais faixas do disco.

Certamente mais uma linda canção de Marisa, mas não apenas isso.

Era a música “Gentileza”. Uma homenagem singela e honesta ao profeta das ruas cariocas, José Datrino, gentilmente conhecido pelo apelido de Profeta Gentileza.

Parece que foi ontem: idos de 1987, eu era aluno da escola militar CPOR, em São Cristóvão/RJ e fazia todos os dias o trajeto que passava pela Avenida Brasil e contornava a zona portuária do Rio, passando por baixo dos viadutos do Caju, da Rodoviária Novo Rio e Leopoldina.

Bairros velhos e históricos.

Naqueles tempos, 24 anos atrás, todos que por ali passavam começaram a perceber algumas mensagens pintadas à tinta branca e colorida nas paredes de muros e nos pilares das pontes.

Com uma caligrafia semi-gótica e estilizada, alguém escrevia mensagens de paz, amor e gentileza.

A mensagem mais escrita e repetida era “Gentileza gera gentileza” e “Amor, palavra que liberta”.

Sempre em letras brancas e com alguma repetição da letra ‘r’, como a reforçar seu sotaque natural.



Isso acontecia em dezenas de muros e pilares de viadutos, repetidamente.

No começo, um mistério: quem seria aquela pessoa que escrevia aquelas belas mensagens ?

Depois, a revelação: era o profeta Gentileza. Um senhor, na época com uns 40 anos de idade, que, em desapego à matéria, começou a vagar pelas ruas do Rio e a escrever nos muros, mensagens de amor e paz.

Fui transferido para Campinas/SP em 1989 e daí pra frente fixei minha vida em SP, deixando pra trás o Rio, a família, os amigos e, também, o profeta Gentileza.

Tempos atrás fiquei sabendo através de meu irmão que as mensagens do Gentileza tinham sido apagadas dos muros.

No seu lugar, uma grossa e fria camada de tinta cinza foi pintada. Verdadeira invasão.

Daí a inspiração para a música de Marisa Monte.

Passados mais alguns anos, me disseram que o profeta havia falecido. Sozinho e desamparado, como se a frieza dos muros onde escrevia tivesse sido mais forte que sua mensagem.

Na época fiquei triste. Quase como quem perde um amigo.

Hoje fui tocado por esta lembrança através da arte e da poesia de Marisa Monte.

Recordei com carinho aqueles dias, quando gentileza era uma palavra, pelo menos, lida todos os dias e o amor, era outra palavra, que quando dita, escrita e repetida, perdoava, aproximava e libertava.

Palavras do profeta Gentileza.

GM

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